domingo, maio 07, 2006

MÃE

Hoje é dia de se lembrarem todas as mães. É dia de dar uma prendinha às mães, um abraço, um beijo, uma flor. O desenho lindo que o pequenito fez com tanto amor. O telefonema apressado do filho que está longe, mas, até ele, esquecido e ocupado com mil afazeres diários, cumpre o ritual
E, por causa do brilho no olhar de muitas mães, enlevadas na presença dos seus meninos, lembrei-me de ti.
Sei que também te devia abraçar e glorificar muitas outras vezes, mas desculpa-me, fechada no meu pequeno mundo, também nem sempre te recordo. Mas hoje é um dia especial.
Para ti, mãe de qualquer menino deste planeta, vai o meu abraço, o meu beijo, a minha ternura e todos os ramos de flores que gostaria de ver brilhantes e belas, a desabrocharem, sob o teu olhar enternecido.
Parabéns para ti, menina mãe, que com o coração cheio de medos e dúvidas, sem apoios familiares ou outros, amaste o teu filho, o teu novo boneco que mudou para sempre a tua vida de menina.
E para ti também, mãe maltratada pela vida e até por esse filho que criaste com tantas dificuldades, parabéns! Foste uma grande mulher! Tal como tu, mãe esquecida na velhice, na doença ou na pobreza.
Mãe, parabéns! Sei que o teu filho partiu à muito, parece ter-te esquecido, mas, se me aceitas, estou aqui ,por ele, a abraçar-te e a dizer que também eu te amo muito, mãe.
Mãe, da fome, da guerra, da falta de amor, da dor, da juventude e da velhice, sorri. Obrigada pelo amor que só tu soubeste e sabes ainda dar ao teu menino, à tua princesa. Tu és linda! Parabéns, mãe!

quarta-feira, janeiro 11, 2006

Pós de PERLIMPIMPIM

Hoje senti a tua falta, queria correr para ti e partilhar contigo a minha felicidade, abraçar-te, dar-te um beijo e ficar a sorrir no teu olhar.
Porque será que um dia temos a nossa idade cronológica e, quando menos esperamos, somos adolescentes cheios de alegria, vivacidade, vontade de correr e saltar?
E ainda, uma grande vontade de espalhar por todos uns pós de perlimpimpim que nos irmanassem nestas coisas?

sábado, janeiro 07, 2006

Sorriso

Bem sei que é teimosia, que já devia ter desistido de esperar, nesta atitude, ora calma e paciente, ora expectante e exigente. Não importa. Recuso-me a desistir. O sentido tem de ter forma, já que este tem essência. Não desisto. Tenho todo o meu tempo. Se o tempo for longo, talvez longa seja a espera. Paciência!... Se for curto este meu caminhar, também isso não é significativo. SEI que, a resposta à minha espera será e estará, sempre, na actualização do sentido.
Continuo à espera.

quarta-feira, janeiro 04, 2006

A Espada

E querem lá ver que aquele velho cretino e misógino tinha razão quando dizia que o Amor não existe?
Apetece-me puxar da espada (uma dos Templários, se possível), rodopiá-la e cortar-lhe a insana cabeça.

Amigo(s)

Costuma dizer-se que os amigos são para as ocasiões. Mas todos nós sabemos que nem sempre os factos confirmam a proverbial referência. Às vezes os amigos podem não estar disponíveis, podem não compreender até onde vai a nossa real expectativa de auxílio, podem pensar que isto de ser amigo não quer dizer correr para o nosso lado logo que sussurramos qualquer pequena tragédia, podem ainda acreditar que é melhor que cada um lamba as suas feridas na intimidade da sua solidão; ou até achar que não há disponibilidade fora do horário convencional, quando se tem mais que fazer do que aturar os outros e, depois, há limites para tudo.
Depois há os falsos amigos, muita conversa e nenhuma autenticidade, muita curiosidade mórbida, muita inveja e, por detrás de tudo isto, muita vida sem sentido. Destes não há nada a esperar, só a distância que purifica o ambiente. E desejar-lhes uma vida preenchida para que possamos deixar de ser politicamente correctos.
Mas, quando temos um amigo que pode estar muito longe, pode passar anos sem nos ver, pode ser profissionalmente muito ocupado e responsável, mas que atende sempre o telefone quando a vida parece ter desmoronado sobre nós, quando pensamos que ninguém se importa connosco, quando tudo é negro e triste, quando as incertezas e dúvidas nos assaltam, temos que reconhecer que somos, afinal, pessoas de sorte.
E quando nos encontramos, abrimos o coração sem pudor, colocamos as mãos sobre a mesa, sabemos que outras mãos tocarão as nossas, que um abraço secará as nossas lágrimas, que alguém reflectirá connosco sobre o nosso “ terrível” problema. E, quando nos dizem: “ Pareces mais criança do que a tua própria filha!...”, o sorriso reacende-se no nosso rosto. O mimo de que precisávamos inunda-nos e o mau tempo já lá vai.
Deus te proteja amigo! Estamos mais velhos, talvez tu estejas mais sábio, quanto a mim duvido. Mas, mais uma vez, foi bom rever-te, repousar o olhar no teu rosto de barba já toda branca!

domingo, janeiro 01, 2006

O Suave Milagre

Hoje é dia de Ano Novo e, por isso, queria muito deixar um sorriso de esperança, uns restos da festa da noite passada, no rosto de quem possa vir a ler-me.
Mas sou só o que sou. Sou ainda a que tem dores, lágrimas nos olhos e na alma, vontade de ficar quietinha, enrodilhada sobre mim mesma, na minha miséria dos mesmos sofrimentos, revoltas e inquietações.
Mas, estranhamente, sou também aquela que fecha os olhos e deita todas a suas dores na enxerga daquele menino doce de que nos fala Eça em O Suave Milagre. E, como ele, suplico baixinho: “ Mãe, eu queria ver Jesus…”
Quando era criança e lia sem parar, tardes e tardes a fio, na doce quietude do meu quarto, ao chegar a esta parte do texto, com os olhos cheios de lágrimas, um sorriso de felicidade no rosto, um forte aperto na garganta, eu sabia de cor (cor, cordis – coração) que, docemente,(…) “ abrindo devagar a porta e sorrindo” (…) Jesus ia entrar. E bastava, tão somente, que ele dissesse: “Aqui estou.” para que a Alegria, a Paz e o Amor inundassem todo o cenário, o quarto do menino de entre Enganim e Cesareia e o meu quarto, no Porto.
Hoje, ainda me move e comove o mesmo conto. Hoje continuo, muitas vezes, caída no leito pobre e dolorido de entre Enganim e Cesareia, mas sei que Ele vem docemente para me levantar, pôr de novo a caminho, curar as minhas feridas e abrir novas perspectivas para eu continuar.
Feliz Ano Novo para todos vós!

sábado, dezembro 31, 2005

Palavras da Avó

Vamos imaginar, Gabriel, que a avó foi obrigada a partir para muito longe. Para tão longe que não pode regressar em breve. A avó viajou durante muitos e muitos dias. A tua avó partiu muito triste porque sabia bem que os homens poderosos e maus que faziam as leis da sua cidade não a iam deixar abraçar-te, beijar-te e, nem sequer, ficar para te poder ver crescer.
A avó primeiro pediu para te ver, queria ter a certeza da cor dos teus olhinhos, do teu cabelo e, até queria ver se continuarias a agarrar o seu dedo como quando tinhas quinze dias, nos conhecemos e começamos a gostar muito um do outro. Mas os homens todos poderosos da nossa triste cidade não percebem nada de amor de avó e neto. Só sabem fazer leis duras e cruéis. E mandaram a avó para bem longe.
A tua avó, Gabriel, já viveu muito, viu muitas terras, coisas e gentes. Já não é muito nova e, por isso, às vezes fica mais sensível, mais frágil e chora. Mas, a avó também é uma mulher forte e corajosa, tal qual como eu sei que tu serás: um homem forte e lutador, capaz de vencer todos os obstáculos com determinação e amor.
A avó acabou por limpar as lágrimas. E resolveu lutar, numa espécie de guerrilha, como quando às escondidas se ataca o poder perverso, mau, do inimigo.
A avó não tem força para vencer essa lei absurda e abusiva que a impede de te ver crescer, mas a avó tem a palavra para te dar. E as palavras, meu querido neto, são beijos, abraços, miminhos, histórias, corridas, brincadeiras, sonhos de príncipes e de princesas, e são, também, a última arma que nos podem tirar. Quando o homem fala e sabe o que diz, os seus pensamentos tornam-se imortais.
Vou escrever para ti, Gabriel. Todos os dias, noites, sempre que quiseres, quando aprenderes a ler, terás a avó contigo. Vais conhecer-me e gostar de mim, através dos livros que vou escrever para ti.
As minhas histórias serão os meus braços à tua volta, os meus beijos e a minha mão na tua. Prometo-te.
E todas as histórias serão escritas para o Gabriel, terão o teu nome e serão assinadas pela tua avó. Saberás sempre que são de mim para ti, só para ti, meu amor.
E um dia, quando a minha cidade já não for governada pela crueldade que separa as avós dos seus netos muito queridos, havemos de nos abraçar com muita força e o Sol há-de brilhar com a nossa alegria. Até lá, porque a avó te ama muito, querido querubim, vou começar a escrever para ti. Dorme bem, para cresceres forte, saudável, inteligente e um ser humano bom e generoso. Beijinhos da avó.

sexta-feira, outubro 14, 2005

Li:

"Finalmente a exigência de amar _ sexualmente e sob outras formas, juntamente com a possibilidade de amar conscientemente _ reside na nossa essência como seres humanos, como elos de ligação na cadeia das gerações. Não conseguimos evitar transmitir este mistério aos que virão depois de nós."
Needleman, Jacob, O Pequeno Livro do Amor, Lisboa, Editorial Bizâncio, 1998, p.120

quarta-feira, outubro 12, 2005

Pequenino

Hoje, durante um pouco mais de uma hora, o meu pequenino neto, aconchegado nos meus braços, sorriu, franziu o narizito, pareceu olhar atentamente as minhas palavras, sussurradas baixinho, aspirou os meus carinhos, a minha mão a percorrer ternamente o seu cabelo castanho, fechou os olhinhos ainda tão pequeninos e aninhou-se sobre o meu peito para dormir um longo e tranquilo sono.
Tive de esperar longos dias para o ver, para o sentir, para que efectivamente firmássemos entre nós os dois o elo do amor.
Também eu tive, e guardo ainda dentro de mim, o amor com que a minha avó materna sempre me envolveu.
E foi levada por uma certa serenidade profunda, madura e cheia de sabedoria ancestral que repeti baixinho que sou a avó e que a avó gosta muito dele.

O Caminho

Atravessei guerras e tempestades, trovoadas e noites sem fim.

Olhei-me, lá fora, desfeita, uma poça de sangue e de dor na berma da estrada. As gentes passavam indiferentes...

Esperei uma manta rota, numa mão generosa, para tapar os meus restos mortais.

Continuei o caminho, o carro ganhou mais velocidade, lá atrás fiquei eu.

O caminho impõe-se. A força renasce.

A menina de grandes olhos curiosos, inocente, olha no retrato a preto e branco, amarelado pelos longos anos. Pobrezinha, que esperaria ela da vida?

quarta-feira, agosto 03, 2005

Origens.

É reconfortante o aconchego da família.
Passamos tanto tempo a construir a nossa própria família,tão atarefados,tão devotados à família recém-construída que a nossa família de origem vai ficando lá para trás.Corresponde, de certa forma ao nosso ponto de partida, ao nosso passado,e nós temos muita pressa de viver e criar o futuro.Estranhamente,é mais tarde, que a necessidade das origens se faz sentir.E, mesmo com todas as perdas que inevitavelmente já ocorreram é imensamente gratificante o regresso.
Isto tudo a propósito de um dia passado com uma tia e uma tia-avó. Só elas são ainda capazes de nos continuarem a tratar pelo nosso diminutivo de infância e de nos fazerem sentir parte de um todo de que somos peça integrante e importante. Só elas são capazes de nos fazer sentir em casa, mesmo longe da nossa casa.Só elas,para nos fazerem desejar regressar sempre ao meu lugar, à terra onde os nossos trisavós, bisavós, avós e pai nasceram.
Construimos a nossa vida aqui ou ali, às vezes, aqui e ali, mas, quando pisamos o ponto de partida, numa idade mais madura,o círculo parece fechar-se naturalmente.É aquele o lugar onde passado e futuro ainda fazem todo o sentido independentemente do fluir do tempo, porque se trata de um dos poucos espaços que ainda é securizante.

domingo, julho 31, 2005

A Misteriosa Chama da Rainha Loana

Em dois dias devorei este novo livro de Umberto Eco.
Para quem, como eu,desejava poder ter a sorte de morrer serenamente,com a certeza de ter feito e dito o fundamental, com a paz de ter percorrido o meu caminho e de ter -me procurado de todas as formas, esta obra trouxe-me outra forma de compreender que nunca é tarde para nos procurarmos e que os caminhos mais tortuosos podem ser os mais adequados ao derradeiro encontro com o nosso ser.
Um AVC pode ser ponto de partida para uma busca urgente e diligente da nossa identidade interior.
A proximidade da morte, mesmo fora do contexto apaziguador da nossa casa,é ainda vista como a última oportunidade de nos reencontrarmos.
E além do mais,é um livro com humor, com interessantes ilustrações e cheio de referências culturais interessantes.Mais do que tudo,cheio de mistério,sonho, nevoeiro,uma casa antiquissima e um certo alfarrabista que desdramatizou,perante mim,o medo da perda da memória autobiográfica e a chegada de uma morte não anunciada.

terça-feira, julho 26, 2005

Liber Manualis_ A Pedido de Um Amigo.

“ Constatando que a maior parte das mulheres têm, neste mundo, a alegria de viver com os seus filhos, e vendo-me, eu, Dhuoda, ó meu filho Guilherme, separada e afastada de ti e, por isso, angustiada e ansiosa do desejo de te ser útil, envio-te este opúsculo, escrito por mim, para modelo da tua formação, ficando feliz porque se estou ausente fisicamente, este presente pequeno livro, acompanha-te espiritualmente para que à medida que o leres, saibas como agir, por amor a mim. “

Dhuoda, Liber Manualis, Les Éditions du Cerf, Paris, 1997, Incipit, p. 72. Trad.

No século IX, afastada da corte Carolíngia, a gerir o património do marido, em Uzès, em 30 de Novembro de 841, Dhuoda inicia a escrita de uma obra de carácter ético – pedagógico, destinada a completar a formação ética do filho primogénito, Guilherme, com quinze anos de idade.
No mesmo ano, em Junho, o jovem Guilherme fora enviado, pelo pai, para a corte como sinal de vassalagem ao seu rei, Carlos, o Calvo.
Dhuoda tinha sido recentemente mãe do seu filho mais novo que ainda não estando baptizado, não tinha nome. Esta criança, nascida a 22 de Março de 841, foi também levada, por determinação de seu pai e senhor, para a Aquitânia, onde este, duque Bernardo de Septimânia, se encontrava então.
Entre trinta de Novembro de 841 e dois de Fevereiro de 843, Dhuoda, sozinha, doente, preocupada com o futuro e destino dos filhos e do marido, vivendo num Império retalhado por lutas fratricidas, dedica-se completamente, de corpo e de alma, à execução de uma obra que possa guiar eticamente o filho mais velho, acreditando que, através deste, o seu papel de mãe e formadora poderá, um dia, envolver também o mais novo:

“ Este pequeno volume, este manual que eu compus e onde inscrevi o teu nome, logo que ele também seja chegado à idade de falar e de ler, mostra-lho e guia a sua leitura, porque ele é a tua carne e teu irmão.”
Dhuoda, obra cit., cap.I, 7, p.116.Trad.

O filho mais novo de Dhuoda recebeu o mesmo nome do pai, Bernardo, contudo, não há dados sobre a sua vida, embora Pierre Riché ( prof. da Universidade de Paris e autor da obra bilingue já citada.) considere que esta criança possa ter sobrevivido e tenha vindo a ser o pai de Guilherme de Pieux, fundador de Cluny.
Em 844, Bernardo de Septimânia, conde de Barcelona, foi executado por traição.
Em 849, Guilherme, foi condenado à morte e decapitado.
Quando terminou a sua obra, o seu Liber Manualis, Dhuoda deveria ter cerca de quarenta anos de idade, a média de vida das mulheres Carolíngias era, então, de trinta e seis anos. Quero acreditar que Dhuoda tenha podido morrer em paz, antes de tomar conhecimento da morte do marido e do filho e após ter exorcizado de si todos os sofrimentos, através da catarse da escrita.

O Sentido da Existência

Parece que toda a vida procurei o sentido da existência. Abri os olhos do corpo e da alma, usei de toda a racionalidade de que fui capaz. Quis passar a centenas e centenas de jovens a importância dessa busca. Disse-lhes, muitas vezes, que se nos enganarmos no percurso, isso não tem mal, procuramos outro caminho, mais de acordo com o nosso posicionamento na vida, os nossos valores, fundamental é continuar a nossa busca, com verdade, perspectivar novas formas de ser, novas formas de nos autenticarmos. Insisti sempre que nunca podemos ficar acomodados, que devemos prosseguir na busca, na nossa busca, que a Verdade brilha lá longe, e não podemos desistir. Disse-lhes que passaremos a vida a buscar…

domingo, julho 24, 2005

Saúde e Amor

Anteontem mais um pequenino nasceu. E ali, no quarto onde os familiares e visitas iam chegando para ver o recém – nascido, onde se trocavam abraços e beijos de felicitações, onde entravam lindos ramos de flores e o ouro, a prata, as lindas roupinhas dignas de um rei David, ou os brinquedos e tudo o mais que a imaginação e dinheiro pode comprar, aconteceu uma adoração do menino. Adoração de uma bisavó, pela primeira vez perante o primeiro bisneto, velhinha e doente, que alguém pediu licença para ajudar a sentar junto ao berço, de elegante design, onde o pequenino dormiu todo o tempo que, em silêncio, a velha bisavó permaneceu a olhá-lo, enternecida. Para decorar o rostinho dele, diria ela depois, e agora já não o esqueço mais. É tão bonito! É tão perfeitinho!...
Aquela adoração do menino, serena e sentida, sem pedir nada em troca, nem a possibilidade de o ter nos braços, foi a prenda mais linda que vi ultimamente dar a um menino.
E lembrei-me das fadas- madrinhas e desejei-lhe saúde e amor pela vida fora.
E o menino sempre tranquilo a dormir.
E logo uma voz bonita e jovem me lembrou que, era evidente, que àquele menino o amor nunca iria faltar. Insisti no meu voto e sai.
Ele vai enfrentar o mundo, uma vida inteira e quer venha a ser advogado, médico, arquitecto, jogador de futebol ou de outro desporto qualquer, só o amor o salvará perante a indiferença, o egoísmo, a mentira, a inveja, a hipocrisia e arrogância de muitos dos que vivem neste mundo.
Que tenhas saúde e amor!

Procura-se

Procura-se outro lugar, outro tempo, outros seres.
Procura-se uma porta para abrir, fechar e sair.
Procura-se um sorriso noutra face, noutro espaço e noutra constelação.
Procura-se uma linha mágica, de cor azul para coser alma rota, aos pedaços.
Procura-se morrer para continuar a viver.
Procura-se o cais de embarque.
O bilhete está pago.
Não falta nem um cêntimo!
Todas as etapas burocráticas estão percorridas…
As vacinas estão em dia…
Tenho pressa de partir!

segunda-feira, julho 18, 2005

SARA

SARA, hoje com a voz doce que sabes fazer quando queres alguma coisa, disseste: Ainda não escreveste sobre mim…E sabes bem que é difícil resistir à tua voz, aos teus pedidos, quando os posso realizar. E sabes também que tenho muitos escritos sobre ti , uns nos meus longos diários ( que não lês, como eu não leio o teu, pelo respeito que temos uma pela outra) e muitos outros, na minha alma, que brilham nos meus olhos, todos os dias, só porque és a minha filha.
Há catorze anos, cinco meses, quatro dias e cerca de sete horas, tivemos a nossa primeira longa conversa. É verdade que tu nada disseste, mas suspensa das minhas mãos, o teu rosto voltado para o meu, com os teus olhos de azul lilás bem abertos, habituada que estavas às minhas palavras, parecias atenta. E, acredita, penso que foi o grande momento das nossas vidas. Foi o momento de te receber com muito amor e de te dizer quanto tempo tinha esperado por ti, que já te desejava há muito tempo, que Deus te tinha enviado do fundo dos tempo para os meus braços, cheios de amor por ti. Foi o momento de te dizer, sempre em voz alta, de como eu pressentia no teu nascimento algo de transcendente que era muito mais do que qualquer acontecimento biológico e /ou genético.
Já no final dessa primeira conversa, temi por ti, lembrando-me da condição humana e disse-te:” Minha querida filha, um dia, daqui a muito tempo, vais ser muito velhinha, vais morrer e eu não vou poder estar a teu lado, para te segurar a mão e fechar os olhos.”.E, então, enchi-te de beijos e lágrimas.
Meu amor, tu conheces bem esta história e todas as outras.
É difícil, neste contexto, escrever sobre ti, porque és realmente uma dádiva de Deus.
Só Ele deveria saber porque haveria eu, de ansiar tanto um outro filho.
Só Ele deveria saber que as tuas mãos pequeninas me ajudariam a viver. Só Ele sabia que a minha filha só poderia ser muito especial.
És uma menina muito linda, por fora e por dentro. Vais ser sempre muito lutadora, corajosa e boa. És alegre, amiga, estudiosa e feliz. ADORO-TE! Mil beijinhos da mãe.

domingo, julho 17, 2005

HOJE

Hoje é dia de presente, nem de memórias, nem de ficções.
Hoje é dia de continuar, hoje é dia de um pé adiante do outro, de um sentido da existência que só pode estar, a partir de hoje, inscrito num outro devir.
Hoje é dia de uma antropologia moderna que já afirmou, há séculos que “as paixões da alma fazem bem ao corpo e as paixões do corpo fazem bem à alma.”
Hoje é dia de, apesar de tudo, acreditar que a nossa civilização pode ainda ser uma civilização da imagem em busca da luz, como o foi em tempo medievos.
Hoje é dia de prosseguir trabalhos, reflexões, aprendizagens, estudos e muitos diálogos e disputationis.
Hoje é dia da humildade do aprendiz.
Hoje é dia que só pode resultar da memória que hoje está prenhe de ontem.
Hoje é dia de parabéns!
Hoje é o dia de dizer como é importante ter consciência de saber que “há um tempo para tudo”.
Durante dois dias inteiros, tive o prazer de ouvir boas comunicações em várias línguas, o prazer de rever amigos, professores, conhecidos, conhecer novas pessoas, conviver, mergulhar na minha Universidade e no meu Departamento, sentar à roda de uma mesa, numa fantástica companhia, primeiro num jantar, mais tarde, num outro espaço, bem mais informal, numa boa conversa, tudo em homenagem à nossa ilustre Professora Doutora Cândida Pacheco, senhora de grande sabedoria e sentido do humano.
Parabéns Professora, pelo seu aniversário!
E, mais uma vez obrigada, por me fazer sentir de novo em casa.

domingo, julho 10, 2005

TERRA DE RIA E MAR

Hoje apetecia-me pegar no carro e fazer uma viagem. Pequena, diga-se em abono da verdade, mas, por condicionalismos vários, que não vêm aqui ao caso, vou fazer como um certo senhor, Xavier de Maistre, autor, do século XVIII, da obra Voyage Autour de Ma Chambre. E fico-me por aqui, enquanto a minha memória e afectos, me levam até lá.
Lá é a Murtosa, terra de ria e mar, de moliço e moliceiros (graças a Deus e a alguns que não querem perder a tradição), de enguias que aprendi a amanhar na boca do poço da casa da minha avó paterna, numa mão a areia finíssima da Torreira, na outra a velha navalha afiadíssima da velha avó. Anda lá, filha, não tenhas medo, força! Espetas fundo e abres a barriga até cá cima. Não a deixes fugir, põe mais areia nas mãos, filha!
Linda a terra do meu pai! Linda durante o mês inteirinho de Setembro, quando as férias grandes eram mesmo grandes e depois de um mês de Agosto todo passado na praia, a Murtosa era um outro mundo onde eu mergulhava inteirinha.
E porque me recuso a deixar morrer tudo o que amo, quero garantir-vos ( e podem bem acreditar, porque há muitos anos atrás apaixonei-me pela busca da verdade e, morreria por ela se necessário fosse), que a Murtosa continua bela, que, se seguirdes de Ovar, na direcção da praia da Torreira, vereis, à vossa esquerda, a ria (Não se diz ria, papá, é rio, não há rias...E o meu pai: É água do mar que entrou pela terra dentro, é salgada. E eu, na primeiríssima oportunidade, língua de fora, água da ria na boca… É mesmo verdade, ora vejam lá...). Talvez possais sentir o cheiro forte a moliço que antes servia para adubar as férteis quintas do Norte que vedes à vossa direita. Mais adiante, depois da ponte, ainda em direcção à Torreira, lá está o Clube de Vela.
Mais à frente, passe a publicidade, sentem-se no Café do Guedes que desde que me lembro parece ter estado lá sempre e, enquanto tomam o mesmo, que não o Guedes, que na verdade, de tanto lhe ouvir o nome, já nem deve existir, mas o café, que eu não peço bica, embora coexista com elas pacificamente e, da varanda, debruçada sobre a ria, deixem-se envolver, pela água, pelos sons, pela vista do outro lado da ria,a paisagem da Murtosa. Às vezes, há regatas e os barcos à vela correm com destreza.
Lá ao cimo da rua está o mar, também salgado, mas mais forte, como eu gosto de o ver, de ondas bravias e sonoras, cheias de espuma e sal. E, outrora, cheio de peixe com o qual as redes enchiam as frágeis embarcações que os bois possantes e
arquejantes, com as línguas de fora, puxavam para terra, no meio de uma azáfama de cores aos quadrados coloridos, de areia molhada, dos gritos dos donos dos bois a incitá-los à lide, do cheiro bom a peixe fresco, dos caranguejos correndo aos nossos pés, da alegria estampada no rosto de todos, dos pescadores,das peixeiras, dos garotos que corriam como loucos , de um lado para o outro a ajudar a família, dos poucos veraneantes e dos mirones. E a faina a irmaná-los: Foi, bom. Foi bom, sim senhor!
Amanhã, ou talvez mais logo, vou continuar a minha viagem. Está na hora de almoço e não faltam simpáticos restaurantes, com bom peixe fresco aqui, na terra dos meus antepassados. Vamos entrar?

sexta-feira, julho 08, 2005

DHUODA, MINHA IRMÃ

Tomei o primeiro contacto com Dhuoda, duquesa de Septimânia, Condessa de Barcelona, durante o ano lectivo de 2000/2001; vivi a ler, a anotar, a comparar com o texto em latim, enfim, a analisar, a fazer todo um trabalho de hermenêutica do seu texto, o Liber Manualis. Nos dois anos seguintes o meu trabalho e a minha escrita prosseguiram, umas vezes muito rapidamente, outras, contrabalançando-se com longos tempos de pausa.
A nossa duquesa e condessa e ainda prima do Imperador Carlos Magno, que viveu no Império Carolíngio, no século IX, e cuja obra eu trabalhei em termos de perspectivas ético - pedagógicas, numa Idade Média que foi muito mais produtiva intelectualmente do que ainda hoje muitos acreditam ter sido, revelou-se uma mulher impossível de não admirar.
E hoje, mais uma vez, lembrei-me dela e desejei poder ter também terminado uma grande, embora espinhosa tarefa e, no final, poder dizer como a ilustre Dhuoda:
“Desejo agora, portas fechadas, regressar a mim.”

quinta-feira, julho 07, 2005

À BOA MANEIRA DO EÇA

Hoje não sinto prazer em escrever. A minha filha mais velha está em Londres, diligenciei, por interpostas pessoas, saber se estava bem, enquanto um medo horrível me paralisava e confundia os meus raciocínios. Depois, quando fizeram o favor de me informar que ela estava bem e que nada de terrível, dos cruéis atentados, a tinha tocado, nem ao de leve, fiquei mais tranquila, Mas, todo o dia foi difícil de passar. E custa-me profundamente ter perfeita consciência que, embora me dói-a muito um acto desumano e cobarde de terrorismo, contra civis inocentes, na minha cabeça brada, muito mais alto, a urgência de se decretar uma lei que nunca permita na terra de humanos, seres estranhos, que deixam os outros a sofrer, sem uma palavra de esclarecimento, de solidariedade, seres que matam com outra forma de violência, a psicológica, silenciosa e cobarde.
Eu sei que a tua filha está bem, mas tu, mãe, sofre, espera, descobre, como e quando poderes, se fores capaz.
Eram oito da noite quando a minha filha me ligou de Londres.
A idade não me ensinou muitas coisas que eu gostava de saber. Mas hoje teria casado com um amigo; pelo menos, nunca cases com o inimigo, se fores capaz de perceber quem é o monstro.Mesmo que não te veja há anos, se tiver uma pequeníssima oportunidade de te magoar, não hesitará.Maledetto!!!

terça-feira, julho 05, 2005

VIVER

A vida está plena de tudo, do momento único e simples, contudo repleto de felicidade, que se quisermos podemos guardar na memória, anos a fio, trazendo do passado ao presente toda a sinestesia de cores, sons e cheiros que ainda abrem no nosso olhar um sorriso doce; mas também do momento único em que o nosso coração pareceu parar de bater, a nossa cabeça parecia ir explodir, os nossos olhos devem ter ficado desmesuradamente abertos e uma dor insuportável e incomensurável tomou conta de todo o nosso corpo e nada parecia poder ser real, de tão kafkiano e insuportável; e depois, e ainda bem, a vida tem ainda todas as nuances intermédias, senão, acho que não aguentávamos, nem tanta felicidade, nem tanta dor. Assim, e porque há que nos reinventarmos, enquanto nos reconstruímos, e porque, ou preservamos os tais momentos belos que ainda nos fazem sorrir, ou desistimos e, então perdemos tudo, há que aceitar o que de positivo a própria dor pode trazer a cada um de nós no nosso crescimento ontológico, na nossa dimensão ética e antropológica.
Considero ainda que uma das situações muito desagradáveis de enfrentar são as humilhações, quer pela nossa cultura, quer pela injustiça, arrogância, ou falta de educação a que logo as associamos. Mas, penso que até elas podem ser vistas como um convite a um exercício de despojamento.
“Tomai Senhor e recebei toda a minha liberdade, a minha memória, o meu entendimento e toda a minha vontade, tudo o que tenho e tudo o que possuo. Vós mo destes, a Vós, Senhor, o restituo. Tudo é Vosso, disponde de tudo segundo toda a vossa vontade. Dai-me o Vosso amor e graça que esta me basta.”

ST. Inácio de Loyola

segunda-feira, julho 04, 2005

O SILVEIRA

A minha amiga conheceu o Silveira num daqueles chats meio desinteressantes que proliferam na Net. A Joana é óptima a meter conversa com desconhecidos, conhece tudo o que é sinalética de chats e gosta de matar os momentos de solidão a falar para o escuro. Os amigos, fartinhos de lhe conhecer a tentação, avisaram-na, vezes sem conta, dos perigos, dos mais prováveis aos mais impensáveis, dos mentirosos, dos casados que se fingem divorciados ou solteiros, dos que só querem uma oportunidade mínima para ter sexo, dos tarados, dos violentos, dos homicidas, dos ladrões, dos que têm sida e procuram vingança em inocentes, etc, etc, etc. A Joana, muito loura, alta, bonita, brilhante magistrada, semicerrou os lindíssimos olhos azuis e, do alto da sua experiência de quarentona bem vivida disse: Este é só um administrativo, separado (faz ele questão de dizer), pai extremoso de uma adolescente e até, ainda não parece ter esquecido a ex.
Afinal, o Silveira revelou-se um homem muito inteligente, o que nada tinha a ver com o seu décimo primeiro ano incompleto, e em nada, dizia a minha amiga, parecia ser incompatível com o ilustre doutoramento dela.
Durante vários meses, após o primeiro encontro, trocaram confidências, falaram horas a fio, saíram juntos,e os amigos já questionavam, Então, afinal este saiu boa gente? Mas, ela desabafava comigo, amiga desde o liceu, Este tipo gosta de mim, porra, mas esconde-me alguma coisa. E, naquela noite, em que, mais uma vez, ela chegou de Lisboa e, à noite, no Porto, no acolhedor hotel onde ela ficava sempre, depois do jantar e do amor, ele a enrolou no lençol, para que não tivesse frio, e, com a cabeça dela pousada sobre o peito forte e meigo, a abraçou docemente, ela sentiu que tinha encontrado o seu homem. E, depois, mergulhando nas memórias, ele contou-lhe do seu nascimento em Miranda do Douro, da infância vivida ao sabor das barragens que o pai ia ajudando a construir; das casinhas de madeira onde foi crescendo, da mãe, do pai, dos amigos, das brincadeiras no Verão, em cabanas que construíam no meio do monte, de todo o Verão se recordar de usar calções de fazenda e chinelos de meter o dedo…
E a Joana a telefonar-me depois, uma semana após. Ele dissera-lhe que era melhor não se verem mais, que não ia dar certo.

domingo, julho 03, 2005

Quando For Grande Quero Casar Contigo.

Era uma vez um menino. Tinha sete anos quando a família se mudou para aquela rua, para o prédio novo que tinham mesmo acabado de construir ao lado do dela. Ela era um ano mais velha, naqueles tempos quase pré- históricos em que meninas não deviam brincar com meninos e muito menos desconhecidos. Mas tornaram-se inseparáveis rapidamente. Eles não eram propriamente abastados, mas ele solucionava toda e qualquer falta de brinquedos com a sua grande criatividade e engenho. Um belo dia presenteou-a com um tabuleiro de damas que fizera de cartão pintado de preto e de prateado, assim como as respectivas damas.
Duas metades de uma caixa de fósforos, ligadas por uma comprida guita, uniam as varandas daqueles garotos, uma no primeiro andar, outra no rés- do- chão.
A minha tia contou-me esta velha história de amor. Quase tão velha como ela. E como ele, decerto.
A vida, por vezes traiçoeira, fê-la seguir outros caminhos. Mas, sorrindo e com duas lágrimas fininhas a correrem silenciosamente pelo rosto, confessou-me: Naquele tempo, ninguém tinha coragem de dizer que não se casava, no próprio dia, mas, vestida de noiva, enquanto todos iam entrando e me iam cumprimentando, eu esperava que ele subisse aquela escada…Se esse milagre tivesse acontecido…
Talvez o menino de outros tempos, decerto bem mais feliz do que a minha velha tia, goste de blogs e de saber que ela não escolheu o outro, só não soube retroceder e talvez ele sorria com carinho porque, tantos anos após, ela ainda conta esta história bonita à sobrinha.

DEONTOLOGIA.

Num mundo onde grassa, com alguma frequência, em variadíssimas profissões, uma certa falta de profissionalismo, associada a um deprimente marialvismo, tanto um como outro tristemente atávicos e extemporâneos, quero deixar aqui a memória de um acontecimento que evidencia o carácter recto e impoluto de um ilustre médico psiquiatra da nossa Invicta.
A paciente era jovem e supostamente bonita e inteligente, mas, em plena fase de transfert, não resistiu a convidar o médico para tomarem juntos um inocente café. Do alto da sua imperturbável capacidade de ouvir, ele só mudou o tratamento com que se lhe dirigiu, Sr.ª Dr.ª, desculpe, mas não posso. Mas porquê???... Insistiu ela, despudorada, nem parecia ser quem era… E ele, bonito de morrer, achava ela, no seu fato escuro, de corte impecável, perna cruzada, cabelos levemente grisalhos, inteligente e racional, esclareceu: Porque a Sr.ª Dr.ª é minha paciente. E ela, perdido por dez, perdido por cem, Pois agora deixei de o ser, não vou ser mais sua paciente, pronto. E assim, será que a sua deontologia já lhe permite tomar um café comigo?
A resposta veio no mesmo tom de voz, Também não poderá ser, Sr.ª Dr.ª, pelo facto de já ter sido minha paciente.
Ela saiu, sem argumentos, confusa, desiludida e irritada com a sua própria ousadia, (Toma lá, que é para não seres parva e metediça.) e com a firmeza dele (Que presumido, e eu a pensar que ele me tinha em boa consideração e até era meu amigo…).
Passadas duas semanas lá estava ela de novo, na consulta. Envergonhada disse, Desculpe, quero continuar sua paciente. E ele, Muito bem, Maria, faça o favor de se sentar.
Há muito que ela sabia que ele só lhe chamava doutora quando a queria lembrar da necessidade de ser mais responsável e de se auto- policiar.

sábado, julho 02, 2005

Gabriel

O Gabriel tem vinte e quatro semanas. É o meu primeiro neto e amo-o. Amo-o na barriga da minha filha onde nunca o vi empinar-se nem o senti estremecer, onde ainda não tive possibilidade de o afagar e de sussurrar baixinho o nome dele, Gabriel.
É bonito o nome do meu neto, faz-me pensar em naus e caravelas, num homem de largos horizontes, num estudioso, num pensador, num homem bom e justo, e honesto e simples.
Mas os meninos, como o meu Gabriel, e todos os outros, nascem em contextos pré- configurados. Uns em guetos, outros em famílias ditas normais, outros em famílias disfuncionais, uns num casamento, outros numa união de facto, outros de produção independente, etc, etc, etc.
O meu Gabriel que já tem tudo, mãe, não precisa de nada. Até tem dois avôs e duas avós e uma de sobra, que sou eu própria.
E o meu Gabriel, em potência, que eu amo, como se fosse aqui e agora, em acto, trouxe com ele um dilema:
Ou vou recebê-lo à chegada a este mundo e ao pegar nele ao colo hei-de prometer-lhe que vou partilhar das suas alegrias e dores, vou contar-lhe histórias, brincar com ele, ler-lhe livros, mostrar-lhe e ensinar-lhe tudo o que sei; mas esta minha opção trará, sei-o sobejamente, humilhações, faltas de respeito, dor, e implicará dar o flanco a algumas pessoas que, no passado, só me fizeram mal.
Ou, a outra opção que o meu dilema me oferece, é continuar tranquilamente a minha vidinha, escrever, ler, trabalhar e acreditar que, malgré tudo, tudo, tudo, estou viva, sou eu própria, e, quem sabe, talvez um dia, ou noite, tu estejas lá, não sei onde, nem quando, nem como, mas ainda acredito, e então, pode ser que o caminho faça todo o sentido. No dia do parto enviarei flores à minha filha, e bombons, uma linda prenda para o meu neto e esperarei os convites para aparecer que sei que não virão e, não conhecendo o Gabriel, proteger-me-ei de novos sofrimentos; mas sei bem quanto esta minha opção, embora sendo a que me preserva, é cobarde, e priva-me do meu neto para sempre e o priva-o a ele, que nem sequer foi ouvido, da sua única avó materna.
Que fazer?

terça-feira, junho 28, 2005

Noite

À noite nem todos os gatos são pardos. Durante o dia sim, são mais pardos, mais cinzentos, mais estereotipados, mais semelhantes nos seus esgares e movimentos, na forma como observam a presa, como a arranham num ápice, ou a olham pachorrentamente à espera do dia certo e da hora certa para desferir o golpe.
Sempre me pareceu que o dia, por ter os minutos contados, bem pré - definidos e hierarquizados estava cheio de nada e vazio para o mais importante. Para tudo o que não pode ter hora marcada nem para começar, nem para acabar. Para o livro que quero ler até ao fim, sem dormir; para ouvir o barulho da tempestade no mar, do rebentar das ondas nos rochedos, sozinha, iluminada pelo lume que arde na lareira quente e crepitante; para o silêncio que me enche de paz; para o amor (que não o desamor semanal, das vinte e três às vinte e três e sete, vira para lá, dorme, anda…); para o jantar com amigos que se prolonga pela noite fora; para a partilha; para o dar e receber; para chorar e rir; para inventar a coragem de um outro amanhecer…
Ontem foi dia de S. João. Mas só a noite em mim ficou. A noite que estava serena com o rio belo e majestoso a recortar-se, ora escuro e misterioso, ora cheio de feixes de luz, contra a cidade antiga e granítica, ali, para os lados da ribeira, no Porto. Um barco de turismo movia audivelmente as águas espessas do rio. O cheiro a sardinha assada ainda pairava no ar e três ou quatro estrangeiros deliciavam-se com a mesma, conversando alto, numa esplanada, a desoras.
Mais adiante, do pequeno empedrado estreito que guarda fortes argolas que já prenderam muitas embarcações e lembranças, vê-se o rio, lá mais em baixo, sobre o qual se debruça o velho casario, donde, de um pequeno quarto, que parece ter escrito na janela, fim de vida, um homem, idoso, olhos vazios, olha em frente, sentado, de pijama às riscas, junto à janela aberta que, com a luz acesa, devassa tristemente o quarto impecavelmente arrumado e a cama semi - aberta que o espera.
Já no parque da Alfândega é a pesca que domina. Mas a beleza e a serenidade da noite mantêm-se. Cada homem solitário que pesca na noite faz-me pensar numa história de vida…
Sigo de carro na direcção do Castelo do Queijo, lentamente, porque, mais uma vez, a minha cidade acolhe-me e afaga -me no seu regaço e estes carinhos saboreiam-se devagar e também porque, grupos de populares dançam junto à rua e, por vezes, saiem a bailar para a frente dos carros, como aquelas duas mulheres que insistiam para que eu e a minha acompanhante saíssemos do carro e entrássemos na folia. Apesar de uma certa inviabilidade de pôr em prática o convite, confesso que só mo impediu a fila de carros que me seguia. Mas aquelas senhoras abriram um sorriso no meu rosto e na minha alma e naquele instante éramos todas da mesma irmandade, a das folgasãs.
E depois foi a vez do fado que atravessou a quietude do rio, mágico, nascido do nada, da escuridão, lá para as bandas do cais de Gaia, e que entrou dentro do carro que seguia devagarinho para a Foz, bateu em mim que não gosto muito de fado, e, enquanto aquela voz vibrante e sofrida me fazia lembrar os árabes na Península e todas as minhas origens, apertei a mão velhinha ao meu lado, sorri, voltei o rosto para o negrume onde pressentia o rio e os meus olhos encheram-se de lágrimas, e logo me lembrei da urgência de ir, uma destas noites, a uma tasca cheia de raça ouvir cantar o velho fado.